A desconsideração da personalidade jurídica representa um grande receio de empresários e administradores de empresas, independentemente do tamanho, setor, ou do grau de sofisticação do seu estatuto ou contrato social.
É comum receber consultas de clientes questionando sobre os riscos que eles podem correr quando assumem determinada posição em uma empresa e alguns inclusive refletem sobre aceitar ou não assumir posição no conselho de companhias abertas, o que deveria ser motivo de orgulho e prestígio, pois o risco de ter todo seu patrimônio colocado em risco pesa nessa decisão.
Infelizmente, essa é a realidade do sistema jurídico nacional: a desconsideração da personalidade jurídica que deveria ser uma exceção, se tornou regra, e muitas vezes é determinada sem qualquer critério, sem que a parte que será atingida possa ser ouvida. O empresário ou administrador simplesmente acorda pela manhã e suas contas estão bloqueadas, ou recebe uma ligação do seu gerente informando o ocorrido.
O processo é invertido, sendo que primeiro você bloqueia recursos e depois faculta ao “acusado” se defender, o que pode levar anos, mas os recursos ficam bloqueados. Isso sem contar as outras consequências, visto que um executivo com bens bloqueados sequer consegue vender um imóvel (ainda que seja uma boa oportunidade), ante o risco da fraude à execução. Mesmo com razão e uma decisão favorável, as consequências práticas são nefastas e o estrago já foi consumado.
A autonomia da pessoa jurídica, que lhe confere personalidade jurídica, patrimônio próprio, assim como direitos e deveres, constituem os pilares do direito empresarial, e possui um duplo incentivo. De um lado protegem (ou deveriam proteger) o empresário mediante a separação do patrimônio pessoal do patrimônio empresarial, e de outro – talvez o mais importante – serve como incentivo para o empreendedorismo.
Ora, em uma economia de mercado voltada para valorização da livre iniciativa (como deveria ser a nossa, pelo menos é que o garante a discussão), o sistema legal deve proteger e incentivar o empreender para que possa tomar os riscos necessários para construção de novos negócios, gerando riqueza, empregos, pagando impostos e melhorando o ambiente social como um todo. E esse risco que o empresário corre deve ser protegido por um sistema sólido que lhe garanta a separação entre patrimônio da empresa e patrimônio da pessoa física, caso contrário, não terá ele incentivo em empreender e gerar novos negócios.
Esse conceito é tão importante, que a legislação do Estado de Delaware nos Estados Unidos (assim como de outros estados) permite a inclusão de disposições nos estatutos das empresas determinando o reembolso de despesas incorridas pelos administradores (bem como funcionários) que sofram qualquer ação como decorrência da posição que ocupam na empresa. O conceito é simples, os administradores precisam ter a garantia de que podem tomar ações empresariais, inclusive arriscadas, desde que sejam feitas de forma consciente, no melhor interesse da empresa e munido das informações disponíveis.
Esse incentivo é o combustível para a inovação e o empreendedorismo.
Voltando para nossa realidade, e visando ampliar essas garantias aos empresários, a lei de liberdade econômica alterou o código civil de forma a deixar mais claras as regras para a desconsideração da personalidade jurídica, determinando a demonstração de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade – utilização da pessoa jurídica para lesar credores ou prática de atos ilícitos – ou confusão patrimonial, caracterizada pela confusão do patrimônio dos sócios ou administradores com o patrimônio da sociedade, mediante transferência de ativos e pagamento de obrigações dos sócios.
Juntamente com essa alteração, a lei de recuperação judicial e falências também sofreu diversas mudanças, inclusive no que trata da responsabilização dos sócios e administradores, eliminando a prática já comum no judiciário de extensão dos efeitos da falência aos sócios e administradores, permitindo apenas a desconsideração da personalidade jurídica que deverá respeitar os requisitos do código civil, bem como o código de processo civil com a instauração do respectivo incidente.
Essas mudanças são bem-vindas, mas não resolvem o problema como um todo, na medida em que na justiça do trabalho os requisitos para desconsideração continuam mais abrangentes, assim como quando se trata de relação de consumo. Nessas duas situações, todo cuidado é pouco.
O fato é que não existe solução mágica e o insucesso muitas vezes faz parte do negócio e não deveria ser uma mácula. O ideal é que o empresário sempre tome medidas acautelatórias antes de iniciar negócios que envolvem riscos, a fim de não perder o seu patrimônio construído com muito trabalho.