Nosso sócio Renato Tavares, em entrevista ao Capital Aberto, analisa as possíveis implicações de decisão do STJ sobre a possibilidade de fundações e associações sem fins lucrativos proporem recuperação judicial, conforme a Lei 11.101/05.
A decisão tomada pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que entidades que não são empresárias (como as fundações e associações sem fins lucrativos) não podem pedir recuperação judicial (RJ), conforme estabelecido pela Lei 11.101/05, deverá influenciar vários casos do tipo, apesar de o julgamento não ter ocorrido sob a sistemática de recursos repetitivos (quando a decisão passa a ser aplicada a casos semelhantes). O julgamento dos Recursos Especiais (REsp) nº 2.155.284 e nº 2.038.048 ocorreu ontem (01/10/24).
A Lei de Falências e Recuperação Judicial é voltada para a sociedade empresária (aquela que “exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”). A lei exclui do seu escopo as empresas públicas e sociedades de economia mista, a “instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores”.
Claudio Pieruccetti, sócio do Vieira Rezende Advogados, explica que, no caso das fundações privadas sem fins lucrativos, o entendimento é o de que a ausência de finalidade lucrativa retira o caráter de atividade econômica e, portanto, exclui a possibilidade de usufruir dos benefícios da Lei de Falências e Recuperação Judicial. No entanto, há aqueles que argumentam que a lei não excluiu expressamente as fundações do rol de sociedades que não podem entrar em RJ. A corte começou a analisar a questão em setembro, mas o julgamento foi suspenso por pedido de vista conjunto de dois ministros e foi retomado ontem.
A importância do julgamento do STJ
“A decisão do STJ, a depender da amplitude da discussão, é de extrema importância, pois pode ampliar o conceito de sociedade empresarial para uma avaliação voltada o real e efetivo exercício da atividade empresária, pouco importando o tipo societário escolhido, ou se o registro daquela sociedade é feito nas juntas comerciais ou nos cartórios de títulos e documentos, ou, uma visão mais legalista e restritiva aplicando o texto expresso da lei”, acredita Renato Tavares, sócio do FTA Advogados.
Tavares informa que o acórdão ainda não foi publicado e não se pode afirmar com exatidão seu alcance. “Contudo, aparentemente, referida decisão diverge inclusive de outra decisão proferida pela 4 ª Turma quando do julgamento do REsp 1.004.910, que havia autorizado o processamento de recuperação judicial de uma associação civil.”
Outro ponto relevante é que, embora o julgamento não tenha ocorrido sob a sistemática dos recursos repetitivos, Pieruccetti, do Vieira Rezende, chama atenção para o fato de que o sistema jurídico brasileiro vem se aproximando do sistema de precedentes, típico do direito norte-americano. Ele cita previsão do Código de Processo Civil editado no ano de 2015 de que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (artigo 926). “Isso significa que, apesar de não ser de observância obrigatória, a decisão que vier a ser proferida deverá ter ao menos um papel persuasivo frente aos magistrados que apreciarem a questão daqui por diante.”
Pieruccetti acredita que, dada a aproximação com o sistema de precedentes, e considerando que a aplicação da RJ às fundações privadas sem fins lucrativos tem potencial multiplicado, seria interessante se a matéria fosse afetada sob a sistemática dos recursos repetitivos. “Isso levaria a discussão do tema para a análise da Seção de Direito Privado do Superior Tribunal de Justiça (2ª Seção), composta por 10 ministros, que editariam uma tese a ser aplicada a todos os demais casos.”
Na entrevista abaixo, concedida antes do julgamento de 01/10/24, os advogados do FTA e do Vieira Rezende detalham a questão.
– O que a legislação prevê a respeito de fundações privadas em dificuldades econômico-financeiras? Eles contam com alguma alternativa legal para se manterem em atividade e para ordenar a cobrança dos credores?
Claudio Pieruccettti: Como se sabe, a Lei de Falências e Recuperação Judicial (Lei nº 11.101/05) é destinada ao empresário e à sociedade empresária, assim entendida nos termos do artigo 966 do Código Civil, isto é, aquele que “exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. O referido diploma legal expressamente exclui a “empresa pública e sociedade de economia mista” (inciso I do artigo 2º) e a “instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores” (inciso II).
Os demais devedores civis que não se enquadram no conceito de empresários podem se socorrer da insolvência civil, como destaca Humberto Theodoro Júnior ao afirmar que “o devedor civil, portanto, passou a ser visto, para aplicação da insolvência regulada pelo Código de Processo Civil, como todo aquele que não seja empresário e que não se inclua entre as pessoas jurídicas de direito público, nem esteja submetido a alguma lei concursal em particular” (A Insolvência Civil, 6ª edição, Forense, p. 109). Esse instituto possui sua regulação procedimental no artigo 748 e seguintes do Código de Processo Civil revogado (Lei nº 5.869/73), que ainda estão vigentes por força do que dispõe o artigo 1.052 do novo Código de Processo Civil, além das normas materiais inseridas nos artigos 955 a 965 do Código Civil.
As regras acima citadas cuidam não apenas da formalidade do procedimento de insolvência civil, mas também contêm previsão a respeito da ordem de privilégio especial (artigo 964 do Código Civil) e privilégio geral (artigo 965 do Código Civil).
Renato Tavares: Do ponto de vista estritamente legal, essas entidades teriam como “alternativa” para solução das suas dificuldades o procedimento de insolvência civil, previsto no Código de Processo Civil de 1973 (já revogado), mas que, por disposição expressa do atual Código de Processo Civil, permanece em vigor.
Referido procedimento não visa a continuidade das operações, e, considerando seu formato, quase não se tem notícia da sua utilização prática.
– Por que as fundações privadas não podem entrar em recuperação judicial (RJ)? Quais são os argumentos contrários e favoráveis para tanto?
Claudio Pieruccettti: Como destacado na resposta acima, a Lei nº 11.101/05 foi idealizada para alcançar aqueles que exercem atividade empresária, conceito hoje encontrado no Código Civil, e que exige o exercício profissional de atividade economicamente organizada para produção ou circulação de bens e serviços.
No caso das fundações privadas sem fins lucrativos, o entendimento é o de que a ausência de finalidade lucrativa retira o caráter de atividade econômica e, portanto, exclui a possibilidade de usufruir dos benefícios da lei.
Ainda em uma análise preliminar pelo fato de o julgamento iniciado no Superior Tribunal de Justiça (REsp. nº 2.155.284 e REsp. nº 2.038.048) não ter se encerrado, pode-se acrescentar que o ministro Villas Bôas Cueva adicionou ao primeiro argumento o fato de as aludidas entidades já gozarem de um benefício que é a imunidade tributária, razão pela qual permitir o gozo desse segundo benefício significaria impor à sociedade como um todo suportar um ônus ainda maior.
Além disso, ainda argumentam que a extensão da Lei nº 11.101/05 às fundações privadas sem fins lucrativos ainda violaria o artigo 51, inciso V, da lei pelo fato de o dispositivo exigir como requisito da petição inicial a apresentação da “certidão de regularidade do devedor no Registro Público de Empresas, o ato constitutivo atualizado e as atas de nomeação dos atuais administradores”.
Contrariamente a essa posição estão aqueles que entendem ser a Lei nº 11.101/05 aplicável às fundações privadas sem fins lucrativos pelo fato de não terem sido listadas no rol de exclusões constante do artigo 2º.
Afora isso, ainda sustentam que a lei seria aplicável àquelas fundações privadas sem fins lucrativos que exerçam atividade econômica, o que inclusive encontra amparo em decisões do Superior Tribunal de Justiça (AgInt no TP nº 3.654/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Raul Araújo, j. 15.3.22)
Renato Tavares: O artigo 1º da Lei de Recuperação Judicial delimita o leque de abrangência da referida legislação para as “sociedades empresárias”.
As sociedades empresárias são aquelas que exercem atividade empresarial pelo empresário (conforme o artigo 966) e que registram seus atos no registro público de empresas mercantis (Juntas Comerciais), tendo a Lei de Recuperação Judicial excluído textualmente do referido procedimento instituições financeiras, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de saúde, seguradoras, sociedade de capitalização e outras entidades equiparadas às anteriores.
Ou seja, uma fundação, não seria, tecnicamente uma sociedade empresária e não estaria legitimada a se valer do procedimento da recuperação judicial.
Os procedimentos de reestruturação coletivos são usualmente estruturados para solucionar o problema de ações coletivas, situação em que o devedor possui diversos credores, os quais, se valendo de ações individuais e descoordenadas, “atacam” os ativos do devedor para satisfação do crédito, o que pode ser ineficiente, do ponto de vista de alocação de ativos e continuidade da atividade empresarial. Sob esse ponto de vista, os procedimentos coletivos (tanto a falência quando a recuperação judicial), visam concentrar em um mesmo juízo todas as decisões sobre os bens do devedor, assim como submeter todos os credores ao mesmo procedimento de negociação coletiva, visando extrair melhor valor dos ativos. Por essa perspectiva, o que importa aqui é o exercício da atividade empresária e a solução do problema coletivo.
Do outro lado, os que defendem a leitura legalista e estrita da lei afirmam que uma decisão desse tipo pode impactar o mercado de crédito, que não vislumbrava essa possibilidade quando da concessão do crédito.
– O que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) irá julgar a respeito? A decisão do STJ será aplicada a quais casos?
Claudio Pieruccettti: A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, atualmente composta pelos ministros. Humberto Martins (presidente), Nancy Andrighi, Marco Aurélio Bellizze, Ricardo Villas Bôas Cueva e Moura Ribeiro, iniciou no último dia 10/09/24 o julgamento conjunto dos Recursos Especiais nº 2.155.284 e nº 2.038.048, que se encontram sob a relatoria do ministro Cueva.
Até onde se tem notícia, os referidos recursos não estão sendo julgados pela sistemática dos recursos repetitivos, razão pela qual a decisão que vier a ser proferida não será de observância obrigatória pelos demais juízes e tribunais.
De todo modo, não se pode perder de vista que desde há algum tempo o sistema jurídico pátrio vem sofrendo alterações que o fazem se aproximar do sistema de precedentes, típico do direito norte-americano.
Nesse sentido, o Código de Processo Civil editado no ano de 2015 contém previsão no sentido de que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (artigo 926). Isso significa que, apesar de não ser de observância obrigatória, a decisão que vier a ser proferida deverá ter ao menos um papel persuasivo frente aos magistrados que apreciarem a questão daqui por diante.
Renato Tavares: O STJ irá jugar se entidades diversas das empresárias (no caso associações sem fins lucrativos), que exercem atividade empresarial possuem legitimidade para ingressar com pedido de recuperação judicial na forma da Lei 11.101/05.
A decisão do STJ, a depender da amplitude da discussão, é de extrema importância, pois pode ampliar o conceito de sociedade empresarial para uma avaliação voltada o real e efetivo exercício da atividade empresária, pouco importando o tipo societário escolhido, ou se o registro daquela sociedade é feito nas juntas comerciais ou nos cartórios de títulos e documentos, ou, uma visão mais legalista e restritiva aplicando o texto expresso da lei.
Vale ressaltar que na sessão do dia 01/10/2024, a 3ª Turma do STJ, por maioria, negou provimento ao Recurso Especial objeto da presente discussão. O acórdão ainda não foi publicado e não se pode afirmar com exatidão seu alcance. Contudo, aparentemente, referida decisão diverge inclusive de outra decisão proferida pela 4 ª Turma quando do julgamento do REsp 1.004.910, que havia autorizado o processamento de recuperação judicial de uma associação civil.
– Em sua visão, seria importante uma discussão mais ampla sobre o assunto?
Claudio Pieruccettti: Na linha da resposta anterior, o movimento que se verifica no sistema jurídico pátrio desde há algum tempo é o de caminhar para uma aproximação com o sistema de precedentes. E isso, sem emitir aqui qualquer juízo de valor, inclusive no intuito de racionalizar a prestação jurisdicional.
Diante disso, e considerando que o tema envolvendo a aplicação ou não da Lei nº 11.101/05 às fundações privadas sem fins lucrativos tem um potencial multiplicado, penso que seria uma medida salutar afetar os recursos sobre a matéria para julgamento sob a sistemática dos recursos repetitivos.
Isso levaria a discussão do tema para a análise da Seção de Direito Privado do Superior Tribunal de Justiça (2ª Seção), composta por 10 ministros, que editariam uma tese a ser aplicada a todos os demais casos.
Renato Tavares: Sim. Considerando as diversas entidades, inclusive sem fins lucrativos, exercendo atividade empresarial com impactos na sociedade como um todo, uma solução adequada para a situação de crise, de forma coletiva e coordenada, seria mais produtiva e eficiente para todas as partes.