O pedido de falência, com base na Lei 11.101/05 (LRF), pode ser realizado basicamente com fundamento em duas situações distintas. Ou deriva do não pagamento de dívida líquida certa e exigível (representada por título de crédito judicial ou extrajudicial) [1], artigo 94, I e II, da LRF, ou deriva de atos e situações que a lei assim caracterizou como “atos de falência”, artigo 94, III, da LRF.
Na primeira situação, falência requerida por impontualidade, distribuído o pedido falimentar, ao devedor é facultado realizar o depósito do valor devido, acrescido de juros, correção e honorários do advogado, hipótese em que apresentada contestação, caso o pedido de falência seja julgado procedente, será determinado o levantamento do valor e não será decretada a falência do devedor. Trata-se do chamado depósito elisivo, uma vez que, independentemente da sentença a ser proferida no pedido de falência, o devedor não terá sua falência decretada, uma vez que elidiu o débito objeto do pedido.
Referida faculdade deixa clara a opção legislativa de garantir ao devedor o pagamento do débito, evitando, assim, a falência. Ou seja, o sistema da LRF e a política adotada no sistema legislativo nacional prima pela preservação da empresa e continuidade das suas atividades. Pago o credor, não existe razão para, ainda assim, se determinar a falência da empresa que pode continuar gerando empregos, renda e contribuindo para a economia.
Ao credor não interessa a falência (ao menos do ponto de vista financeiro), inclusive porque, em muitos casos, seu crédito não será pago na integralidade. Para a sociedade, ressalvados os casos da empresa que não tem condições de continuar operando, também não interessa a decretação da falência.
Entendimento diferente não seria nem razoável, transformando o pedido de falência fundado no inadimplemento em uma verdadeira falência sujeita à chancela do Judiciário.
Situação diferente ocorre na falência requerida com fundamento nos atos de falência, em que a lei de forma expressa excluiu a possibilidade de realização do depósito elisivo, ou, em outra leitura, a lei somente faculta a realização do depósito elisivo nos pedidos de falência decorrentes do não pagamento de dívida.
Referida disposição tem razão de ser, uma vez que o pedido decorrente de atos de falência não tem como causa de pedir o não pagamento de crédito líquido, certo e exigível, mas pelo que a lei optou por definir como atos capazes de colocar a continuidade da empresa em risco, ou tem o potencial de fraudar credores com a dissipação de ativos. Nesse cenário, em que o pedido é realizado em razão da prática deliberada de atos que podem prejudicar os credores, o depósito elisivo não tem razão de existir [2].
Outra hipótese de decretação de falência decorre do não cumprimento do plano de recuperação judicial no chamado período de supervisão judicial. Aprovado o plano de recuperação judicial e homologado pelo juízo competente, a devedora, mediante decisão do juízo competente, poderá permanecer em recuperação judicial [3] até que se cumpram as obrigações vencidas até no máximo dois anos da concessão da recuperação judicial. Esse espaço temporal é conhecido como período de supervisão (artigo 61 da LRF).
Durante o período de supervisão, o não cumprimento de qualquer obrigação estabelecida no plano de recuperação judicial implicará na convolação da recuperação judicial em falência (§1º do artigo 61 da LRF), hipótese em que os credores terão seus direitos e garantias reconstituídos nas condições originalmente contratadas.
Diz-se, portanto, que se trata de novação sob condição resolutiva, qual seja, o cumprimento das obrigações previstas no plano durante o período de supervisão.
Superado o período de supervisão, e tendo a devedora cumprido suas obrigações (superada portanto a condição resolutiva), a recuperação judicial será encerrada por sentença, com a consequente novação das obrigações na forma prevista no plano de recuperação judicial (artigo 59 da LRF).
Com a prolação da sentença de encerramento, o plano de recuperação judicial aprovado e homologado passa, para as obrigações por ele afetadas, a constituir o novo contrato entre devedor(es) e seus credor(es). As obrigações anteriores à recuperação judicial são novadas.
Com a novação, no caso de não pagamento da dívida na forma do plano, os credores, detentores de um título executivo, podem perseguir a satisfação do seu crédito via ação de execução, podendo ainda, caso assim entendam necessário, apresentar pedido de falência em face do devedor.
Apresentado o pedido de falência, dúvida que surge é sobre a possibilidade de realização do depósito elisivo em razão do não cumprimento de obrigação prevista no plano de recuperação judicial após o período de supervisão.
Referida dúvida surge, aparentemente, em razão da leitura simples da lei, que, entre os chamados atos de falência que facultam ao devedor o requerimento do pedido falimentar, inseriu na alínea “g” do inciso III do artigo 94 da LRF o não cumprimento, no prazo estabelecido, de obrigação assumida no plano de recuperação judicial.
Ora, em uma leitura literal da lei, ocorrendo o descumprimento do plano após o período de supervisão, deve a falência ser requerida com base no referido dispositivo legal, e, estando referido dispositivo legal entre aqueles que impedem a realização do depósito elisivo, não poderia a devedora realizar referido depósito.
Diante dessa interpretação, pergunta-se, qual defesa teria então a devedora diante de pedido de falência fundamentado no não pagamento de obrigação pecuniária prevista no plano de recuperação judicial?
Essa interpretação leva à conclusão de que o não cumprimento do plano de recuperação judicial, mesmo após o período de supervisão, implicaria, mediante simples requerimento de qualquer credor, na decretação da falência da devedora, uma vez que não lhe restaria qualquer defesa para referido pedido. Excetuadas situações nas quais o pagamento da referida obrigação não ocorreu por alguma impossibilidade imputada ao próprio devedor, e diante da impossibilidade de realizar o pagamento do débito via deposito elisivo, a devedora somente poderia realizar acordo com a outra parte para evitar sua decretação de falência, acordo esse que dependeria da concordância da credora.
Referida interpretação, inclusive, proibiria a empresa de se utilizar das defesas previstas no artigo 96 da LRF, como o pagamento da dívida ou prescrição, uma vez que referido artigo permite a utilização das defesas nele previstas para os casos de falência requerida pelo não pagamento de dívida líquida (artigo 94, I, da LRF).
Invariavelmente, não parece ser esse o sentido da lei, pois, se o assim quisesse, teria feito de forma expressa.
Imaginemos, inclusive, se um concorrente da referida empresa, conhecedor da existência de obrigação existente no plano de recuperação judicial vencida e não paga, e, com intuito de excluir referida empresa do mercado, adquire o crédito em questão do credor original (operação totalmente possível) e apresenta o pedido de falência, por descumprimento do plano, visando única e exclusivamente a obter a falência da empresa.
Não parece ser essa a intenção do legislador, que, ao introduzir no sistema jurídico nacional a recuperação judicial, e que tem como base norteadora o princípio da preservação da empresa, prima pela manutenção da fonte produtora das empresas que se situam em situação de crise econômica passageira.
Obviamente que não se pode esquecer de argumentos contrários, uma vez que, ao obter a concessão da recuperação judicial, com a aprovação e homologação do plano, já teria a empresa se utilizado do referido benefício legal e o não cumprimento de obrigação prevista no plano implicaria na decretação da falência.
Não se olvida dessa hipótese, que inclusive está prevista na própria lei durante o período de supervisão, o que não ocorre após esse período, em razão da novação dos créditos sujeitos ao plano.
Sendo o plano de recuperação judicial, juntamente com a sentença de encerramento, título executivo judicial, a falência decorrente do não cumprimento de obrigação do plano é consequência do não pagamento de dívida líquida, certa e exigível, razão pela qual deriva das hipóteses previstas nos incisos I e II do artigo 94 da LRF, hipóteses essas que facultam ao devedor a realização do depósito elisivo.
Isso não implica dizer, que referida hipótese de pedido de falência descrita na alínea “g” do inciso III do artigo 94 é letra morta da lei, já que os planos de recuperação judicial possuem, além de obrigações pecuniárias, diversas outras obrigações que são assumidas pela devedora — o que, da leitura do sistema jurídico da LRF, permitiria o pedido de falência em questão.
Dito isso, ao que parece, a leitura mais correta da lei é que a falência requerida com base em descumprimento de obrigação pecuniária prevista no plano de recuperação judicial é uma falência por impontualidade, e, portanto, passível de ser elidida com o respectivo depósito.
[1] Enquanto o inciso I do artigo 94 trata das hipóteses de dívida cujo valor ultrapasse 40 salários mínimos, o Inciso II trata da hipótese de execução frustrada. Ambos os casos cuidam de falência requerida por inadimplemento, todavia, no caso da hipótese do inciso II (execução frustrada), não se exige o valor mínimo de 40 salários mínimos. [2] Fabio Ulhoa Coelho possui entendimento diverso, admitindo o depósito elisivo no caso de falência requerida com base nos atos de falência “Embora a lei não preveja expressamente, deve ser admitido o depósito elisivo também nos pedidos de credor fundados em ato de falência, já que ele afasta a legitimidade do requerente. Assegurado, pelo depósito, o pagamento do crédito por ele titularizado, não tem interesse legítimo na instauração do concurso falimentar.” In Coelho, Fabio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 13ª ed. ver. e atual., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. cit. pg. 374. [3] Até o advento das alterações trazidas pela Lei 14.112/2020, a empresa permaneceria, obrigatoriamente em recuperação judicial pelo período de 2 anos. Com a nova redação referido período não é mais obrigatório.Renato Fermiano Tavares