O ano de 2021 foi marcado pela continuidade da pandemia que teve seu início no ano de 2020 e, diferentemente do que se esperava, não teve seu fim até o momento.
Como era de se esperar, as empresas sofreram demasiadamente com os efeitos da pandemia, empresários foram severamente castigados, mas a resiliência, talvez a característica mais marcante do empresário brasileiro, foi essencial para a superação da crise.
De forma intuitiva, para muitos isso poderia representar um aumento considerável no número de recuperações judiciais no ano de 2021, contudo, ao analisarmos apenas os números de recuperações judiciais distribuídas nas varas especializadas do foro central de São Paulo, no período compreendido entre janeiro e maio de 2021, comparado com o mesmo período de 2020, se denota (de acordo com os dados fornecidos pelo Tribunal de Justiça) uma redução de 16% no percentual de novos casos distribuídos.
Obviamente que essa informação por si só não pode ser considerada como uma verdade absoluta apta a afirmar que os efeitos da pandemia não resultaram no incremento dos pedidos de recuperação judicial, até porque se trata de uma pequena amostra. O período analisado é reduzido, os efeitos da crise ainda não foram totalmente absorvidos e, como a prática tem demonstrado, ainda existe certa resistência à recuperação judicial – o que pode levar a uma demora excessiva na decisão de apresentar o pedido de recuperação.
Do lado positivo, importante destacar a sedimentação das assembleias de credores virtuais, que surgiram como resposta – rápida, diga-se de passagem – aos efeitos do distanciamento social que proibiram aglomerações, o que é comum em assembleias.
E essa resposta, que surgiu como solução de um problema pontual e temporário, acabou por criar condições para realização de assembleias de credores que facilitam a participação de um maior número de pessoas, em razão da redução dos custos de locomoção, especialmente nas recuperações judiciais de empresas com credores dispersos por diversas localidades. Obviamente, que como toda inovação, precisa de ajustes e melhorias, e, não obstante a ausência de contato físico e os “desconfortos” que reuniões virtuais longas geram, têm se mostrado eficientes e exitosas, garantindo a todos um maior acesso às assembleias de credores.
Aliado ao cenário de incerteza da pandemia, o próprio instituto da recuperação judicial também enfrentou desafios com a entrada em vigor das alterações legislativas aprovadas no final de 2020, que visam atualizar a legislação falimentar, promovendo alterações de pontos que já vinham sendo aplicados pelo próprio judiciário, bem como introduzindo dispositivos que faziam parte de solicitações de empresários e especialistas no setor.
Dentre essas mudanças, tivemos o reconhecimento no Brasil de decisão proferida em procedimento de insolvência estrangeiro, oportunidade em que a empresa, com sede em outra jurisdição, solicitou (com base nas alterações promovidas na lei de recuperação judicial e falência) o reconhecimento do procedimento estrangeiro no Brasil e a proteção da empresa, com base nesse procedimento. Decisão inédita até então, ante a inexistência de disposição legal.
Ponto polêmico das mudanças legislativas e que começou a ter suas implicações no ano de 2021 recai na necessidade de obtenção de certidão negativa de débitos tributários para a homologação do plano de recuperação judicial. Bem verdade que a exigência de certidão negativa consta da lei desde sua redação original, todavia, a exigência de sua apresentação para homologação do plano de recuperação judicial havia sido relativizada pelos tribunais, inicialmente em razão da inexistência de legislação específica permitindo o parcelamento dos débitos fiscais das empresas em recuperação judicial, e, mesmo após a edição de lei específica, referido entendimento permaneceu válido em razão do reconhecimento de que o parcelamento fornecido às empresas em recuperação judicial não era benéfico.
Contudo, com as mudanças da lei, esse cenário foi alterado, os créditos tributários agora possuem parcelamento específico, bem como é facultado à empresa a possibilidade de transação junto à Fazenda Nacional.
Diante dessa modificação, passaram os tribunais a exigir a certidão negativa como condição para homologação dos planos de recuperação judicial, diferentemente do que ocorria anteriormente. Claro que essa discussão ainda não está sedimentada, e teremos ainda alguns debates sobre o tema no decorrer do próximo ano. De qualquer forma, existem posições que advogam pela relativização dessa exigência, na esteira do princípio da preservação da empresa, enquanto que, de outro lado, existem argumentos que defendem a exigência, inclusive sob a perspectiva das empresas concorrentes que mantêm seus débitos fiscais em dia, e possível favorecimento que isso poderia causar.
O ano de 2021 também fez surgir alguns novos entendimentos dos tribunais sobre os créditos sujeitos (não sujeitos na verdade) aos efeitos da recuperação judicial. Em decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, se reconheceu que multas administrativas aplicadas pelo Estado não estariam sujeitas aos efeitos da recuperação judicial, defendendo referida posição com base na possibilidade de cobrança do crédito da mesma forma que o crédito de natureza tributária, que não é sujeito aos efeitos da recuperação judicial, por expressa disposição legal.
Ainda na linha de decisões sobre a natureza dos créditos sujeitos à recuperação judicial, o Tribunal de Justiça de São Paulo, analisando a sujeição de crédito oriundo de acordo de leniência, entendeu que referido crédito não estaria sujeito aos efeitos da recuperação judicial, uma vez que não se trata de direito obrigacional e decorre do poder de império do Estado.
Outra discussão que deve ser decidida em breve pelo STJ é a possibilidade ou não de aplicação de desconto nos créditos de natureza trabalhista. A discussão, na verdade, é antiga, contudo, já existem decisões permitindo a aplicação de desconto nos créditos trabalhistas que ultrapassam o valor de 150 salários mínimos, utilizando-se, por analogia, da limitação existente no pagamento dos créditos na falência. O que se discute agora é sobre a possibilidade de aplicação de descontos (haircut) sem essa “limitação”, assim como ocorre nas demais classes de credores.
Como pode se ver dessa pequena amostra, o ano de 2021 inaugurou diversas discussões no âmbito da recuperação judicial, contudo, as modificações introduzidas na lei no final de 2020 ainda precisam ser testadas e consolidadas a fim de gerar maior segurança jurídica para os empresários que se veem diante da difícil, mas necessária, decisão de apresentar pedido de recuperação judicial.
A Lei de Recuperação Judicial, assim como qualquer legislação, não pode ser analisada de forma estanque e dissociada do ambiente social, político e econômico em que foi criada e aplicada. A legislação de insolvência possui como princípio angular a preservação da empresa, visando proporcionar ao empresário em crise um ambiente de relativa estabilidade, a fim de permitir a negociação com seus credores, sem que tenha que se defender de ataques individuais sobre os ativos e a operação da empresa.
Esse conceito é importante quando se discute e se excetua, cada vez mais, a definição de crédito sujeito por decisões judiciais em uma interpretação extensiva da legislação. A capacidade de geração de riqueza para pagamento dos credores por parte do empresário em crise é limitada, e se fosse suficiente para pagar os credores na sua plenitude, não seria necessário o socorro do procedimento da recuperação judicial. Assim, a decisão do tamanho do desconto e a forma de pagamento decorre da capacidade de pagamento frente ao tamanho do passivo, bem como da ordem de pagamento dos credores.
Na medida em que se reconhecem créditos não sujeitos (sem que isso conste da lei), e que, portanto, não poderão sofrer os efeitos do desconto, os demais credores – esses sim sujeitos – é que “pagarão” a conta dos créditos não sujeitos. O que se denota nessas decisões, é que a decisão visa sempre proteger o Estado e, ao fazer isso, gera um verdadeiro contrassenso na política econômica que fundamentou a aprovação da legislação, a preservação da empresa, que gera empregos e paga impostos para o mesmo Estado, que na “fila” da recuperação judicial sai na frente, deixando para os demais credores – empresários também – a conta desse privilégio.
O bolo é um só, a fatia que será repartida depende da quantidade de pessoas que vão comer e de quem deve comer primeiro.
*Renato Fermiano Tavares, sócio do escritório FTA Advogados, especialista em direito societário, contratual, recuperação judicial e reestruturação de dívidas. Especialização em Direito Societário pelo Insper e LLM pela Northwestern Pritzker School of Law.